Primeiras anotações. Estudo sobre Privação Preventiva de Liberdade na Prática Jurídica e no Direito Brasileiro.
Parte -1 de 3. Linhas Gerais.
Os números e estatísticas utilizadas no presente texto são fornecidos pelo Conselho Nacional de Justiça, Ministério da Justiça e Instituto Brasileiro de Geografia Estatística, que serão creditados quando da publicação da terceira e última sessão deste estudo. Ainda que não as reputemos completamente confiáveis, ainda desconheço forma de se analisar dados que não possuímos, me restando somente a possibilidade de utilizar-me daqueles que disponho.
"Se afasto do meu jardim os obstáculos que impedem o sol e a água de fertilizar a terra, logo surgirão plantas de cuja existência eu sequer suspeitava. Da mesma forma, o desaparecimento do sistema punitivo estatal abrirá, num convívio mais sadio e mais dinâmico, os caminhos de uma nova justiça". Louk Hulsman
Podemos ser parabenizados pelo fato da doutrina brasileira, em sua esmagadora maioria, estar
de acordo quanto à necessidade de garantia dos direitos constitucionais e
individuais no curso do processo penal, se posicionando veementemente contrária ao uso indiscriminado da prisão cautelar.
Quando o campo de batalha é a teoria e os seminários
de direito penal, os Garantistas, Abolicionistas e Minimalistas (ou pelo menos
nossos amigos mais moderados, os Utilitaristas) felizmente vencem todos os
embates, ficando nossos adversários resumidos a um grupelho de estudiosos
ultrapassados e sem muita expressão, que têm sua glória limitada ao sucesso que
costumam fazer entre os leigos - a mídia enfurecida dos Rodrigos Constantinos e
Raqueis Sherazades da vida - e demais desentendidos do assunto.
Contudo, nossos
Tribunais Regionais e juízes de primeira instância (ficando os aplausos reservados
a nossos Tribunais Superiores, notadamente STJ e STF, que via de regra se
posicionam ao lado da melhor doutrina garantista) e principalmente membros do
Ministério Público, parecem só apoiar o entendimento no campo teórico,
aplicando na prática o mais violento direito criminal, com cidadãos culpados
até prova do contrário e declarado desamor pelas liberdades individuais e
garantias constitucionais. Nosso sistema penal, na prática, utiliza-se de institutos como a prisão preventiva
como se a liberdade de um indivíduo e seus direitos individuais, somados à uma caixinha
de chicletes, não valessem mais do que 1 real.
Via de regra, em
se tratando de qualquer assunto, até mesmo defensores do mesmo ponto de vista
discordam em seus argumentos. As exceções à essa regra costuma ser a unanimidade daqueles
jargões e clichês falaciosos, que se amoldam a um repertório desinformado e
irracional, sustentáculo do discurso que orienta segmentos menos ilustrados de
nossa sociedade.
Exemplo do que
digo é a conhecida e difundida noção de que vivemos no “país da impunidade”.
Perto de 1% dos
brasileiros adultos, do sexo masculino, se encontra atrás das grades ou em vias
de ser aprisionado. Atualmente existem 574 mil detentos em nosso país, e mais
de 300 mil mandados de prisão expedidos e ainda não cumpridos. Nosso meio
milhão de detentos, por si só, nos coloca no 4º lugar mundial em número de
prisioneiros, posição que sobe para 2ª se levarmos em consideração apenas as
democracias constitucionais, ou seja, aqueles países onde as pessoas
supostamente tem direitos e o Estado não pode sair por aí fazendo o que bem
entender, sem prestar contas à Lei. Na corrida pelo aprisionamento de cidadãos
entre países supostamente democráticos, ganhamos medalha de prata.
Em todo o Brasil temos pouco mais do que 320
mil vagas, distribui das por 1482 estabelecimentos prisionais. Ainda que
imaginemos que essas vagas estejam distribuídas regionalmente de maneira
proporcional ao número de detentos, na melhor das hipóteses, nos resta a
tenebrosa conclusão de que colocamos em jaulas mais ou menos 200 mil pessoas
além do número supostamente permitido por nossa estrutura. Não assusta que o
número de detentos que, após sair da prisão, acaba voltando para ela seja estimado
em 80%.
Outros dados
muito interessantes são relativos à escolaridade de nossos detentos e à espécie
de crimes por eles cometidos.
No tocante ao
grau de escolaridade, nada menos que 236 mil apenados não completaram o ensino
fundamental. Somando-se os analfabetos e os meramente alfabetizados, chegamos à
incrível monta de 330 mil prisioneiros com educação abaixo da fundamental,
aproximadamente 65% do número total, número que sobe para 99,5% quando somamos
à estes aqueles que concluíram apenas o segundo grau, mas não possuem educação de
nível superior. Apenas 2.300, míseros 0,5% de nossos prisioneiros, cursa ou
cursou parte de uma faculdade.
No que diz
respeito à modalidade de crimes apenados, 415.000 (quase 80%) são relacionados
ao tráfico de entorpecentes ou crimes contra o patrimônio.
Outro dado igualmente
curioso (ficando livre o leitor para substituir o adjetivo “curioso” pelo
adjetivo “trágico”) é o número de prisioneiros que encontram-se presos sem
ainda terem sido julgados. Um pouco mais de 215 mil pessoas, ainda não
condenadas definitivamente por crime algum, e portanto para todos os efeitos de
direito inocentes, encontram-se encarceradas em nossos estabelecimentos
prisionais. Percebam que isso representa 40% do número total de prisioneiros. Nossos
enjaulados “temporários”, sozinhos, ocupam 70% de nossa capacidade prisional.
Coincidentemente,
a quantidade de indivíduos atualmente encarcerados no Brasil supera o número de vagas que possuímos em
quantidade idêntica ao número de encarceramentos preventivos.
Em síntese grosseira:
prendemos por volta de um por cento de nossa população adulta do sexo masculino,
dos quais 40% ainda não foram nem mesmo condenados. Prendemos quase que
exclusivamente pessoas de baixa renda e baixo grau de escolaridade e, via de
regra, as prendemos por cometerem crimes contra o patrimônio e crimes
correlatos ao tráfico de entorpecentes. E as prendemos mesmo sabendo que em 80%
dos casos a pena de prisão será totalmente ineficiente, pois voltarão a cometer
crimes quando deixarem a prisão.
Obviamente, como
todo e qualquer dado estatísticos, os números citados podem levar às mais
variadas conclusões, muitas delas discutíveis e até mesmo conflitantes. Poderíamos
supor, por exemplo, que a explicação para a abissal discrepância entre o número
de apenados de baixa e alta renda se deve à perseguição sofrida pelas classes
mais baixas por parte de instituições como o Ministério Público e a Polícia Militar,
mas tal suposição, sem maiores estudos, poderia ser considerada leviana e apressada,
ante a possibilidade desses números poderem ser explicados por uma segunda
suposição, igualmente plausível, de que pessoas de classe social mais baixa,
até mesmo por conta da necessidade, tendem a cometer mais crimes, independente
de sua natureza.
Para que
pudéssemos extrair desses números conclusões cientificamente sustentáveis dessa
espécie, seria necessário cruzá-los com várias outras pesquisas sociológicas,
antropológicas e jurídicas, sob pena de apresentarmos respostas falsas às
questões eventualmente levantadas.
Contudo, algumas
conclusões são absolutamente indiscutíveis, e prescindem de diferentes
pesquisas: a primeira delas sendo que, sem sombra de dúvidas, estamos muito
longe de ser o país da impunidade.
Punimos nossos
cidadãos e os punimos muito, ainda que seletivamente. Punimos de maneira ampla
e volumosa crimes como os furto, roubo e crimes relacionados ao tráfico de
drogas.
Podemos concluir,
ainda, que educação e a melhoria das condições econômicas das classes
desfavorecidas são fatores
comprovadamente determinantes no combate e diminuição da criminalidade. Muito
mais eficazes, inclusive, do que punições e vigilância. Afinal de contas, os
mais educados e mais confortáveis cometem muito menos crimes, enquanto aqueles
que mais comumente são punidos, justamente aqueles que sofrem mais duramente as
iras do direito brasileiro, e que supostamente deveriam ser os mais
amedrontados por nossas instituições punitivas, continuam sendo o grupo que
comete a maior parte dos crimes.
Conclusão ainda
mais óbvia e segura é a extrema precariedade de nosso sistema carcerário.
Atualmente encontram-se encarceradas 15
pessoas para cada 10 vagas de nossos estabelecimentos prisionais, o que quer
dizer que precisaríamos aumentar em pelo menos 50% nossa capacidade carcerária
nacional.
Isso sem falar
que nossas vagas não são distribuídas regionalmente na mesma proporção do
número de detentos, e que esse número de vagas inclui aquelas vagas em
delegacias e centros de remanejamento de presos. Em algumas regiões os
presídios abarcam o dobro, o triplo, o quádruplo e, nos piores casos, o
quíntuplo do número de presos que poderiam suportar.
Não são nem um pouco raros os estudiosos que
apontam a situação prisional brasileira como um de nossos maiores problemas
sociais, à exemplo do recém empossado Ministro do STJ, Nefi Cordeiro, renomado
criminalista brasileiro, ex desembargador federal, juiz de carreira, ex
promotor, ex advogado e confesso defensor dos direitos humanos e das garantias
constitucionais.
Vivemos em um
país que optou pela democracia constitucional, e cujo a Constituição define que
somos todos inocentes até o transito em julgado de sentença penal condenatória,
o que quer dizer que o Estado, para limitar, suspender ou esbulhar direitos
individuais (como a liberdade) de um indivíduo, precisa ter a mais absoluta
convicção de que o mesmo é culpado de crime passível de pena de privação de
liberdade, certeza essa que só podemos aceitar que se chegue através do devido
processo legal, que pressupõe contraditório, ampla defesa, legalidade. A
Presunção de Inocência e o direito inafastável ao Devido Processo Legal, na
medida que protegem alguns dos mais preciosos direitos individuais, estão entre
os mais importantes pilares da democracia.
Esses dois
importantíssimos direitos constitucionais, ao lado de outras garantias não são
privilégios da legislação brasileira. Tais mandamentos se encontram, direta e
expressamente, elencados no Pacto de São José da Costa Rica, mais
especificamente em seus artigos sétimo e oitavo, pacto esse que é o mais
importante tratado internacional de direitos humanos e direitos individuais de
todo o continente americano, assinado por todos os países membros do
continente, incluindo-se aí até mesmo Cuba e Estados Unidos.
É verdade que
nossa legislação, em raríssimas exceções ocorridas em situações excepcionais e
extremos, permite a segregação cautelar do indivíduo, antes de sua condenação
criminal.
Nosso Código de
Processo Penal não admite a antecipação de tutela, por motivo que nos parece
óbvio, reservando o carater de cautelaridade à medida de aprisionamento
temporário, só a permitindo a nas situações expressamente elencadas em seu art.
312, sendo elas: necessidade de prisão para a garantia da ordem pública, garantia
da ordem econômica, a conveniência da instrução criminal, ou a necessidade de
se assegurar a aplicação da lei penal.
Em teoria, em
observância às leis processuais e a princípios constitucionais como o da
Presunção de Inocência, o recurso da prisão preventiva só poderia ser
autorizado quando, além de se ter certeza da materialidade de um crime e
indícios fortes de sua autoria, existissem motivos comprovados, objetivos e
fundamentados para se acreditar que a liberdade de um indivíduo acarretaria em
um problema para a ordem pública ou econômica, na impossibilidade de um
julgamento justo ou na ineficácia da sentença condenatória.
Trocando em
miúdos, somente nos casos onde existisse um receio fundamentado objetivamente,
em elementos de um determinado caso concreto, de que a liberdade temporária do
Réu fosse danosa à sociedade ou ao processo penal (por exemplo, existindo
indícios de que o Réu recentemente adquiriu moradia no exterior, existindo
provas de que já tentou ameaçar testemunhas, ou foi pego tentando destruir
provas), podería-se admitir que tal indivíduo ficasse preso enquanto aguarda
seu julgamento.
A doutrina
brasileira, bem como nossos Tribunais Superiores, em uma interpretação
constitucionalmente orientada de nossas leis processuais já pacificaram o
entendimento de que a gravidade abstrata do crime, a existência de
qualificadores ou o alto grau de punição reservado ao Réu pela legislação penal
não são justificativas válidas para a prisão preventiva, nem mesmo a certeza de
sua culpabilidade. Nesse sentido, inclusive, ficou determinado pela Corte
Constitucional Brasileira que até no caso dos crimes hediondos a prisão
preventiva só será autorizada diante da existência de motivação que observe, de
maneira concreta, os preceitos do artigo 312 do Código de Processo Penal, ficando
declarada, em confluência com a doutrina jurídica brasileira, a
inconstitucionalidade da vedação contida no art. 44 da Lei dos Crimes Hediondos,
e determinado que independente da natureza do crime cometido, a prisão
preventiva deverá atender todos seus requisitos para que seja legal, sendo a
regra em todos os casos a liberdade provisória.
E é claro que
não poderia ser diferente: se um indivíduo ainda é inocente em face de uma
determinada imputação, por mais grave que ela seja, não podemos prendê-lo com
base simplesmente em tal imputação. À menos que existam outros fatores
objetivos que nos levem a acreditar na periculosidade da liberdade daquele
indivíduo, ou na necessidade de sua prisão preventiva para evitar que fuja ou
crie empecilhos injustos à persecução penal, não podemos admitir que tal
indivíduo seja preso antes do trânsito em julgado de sentença condenatória em
seu desfavor, pois do crime que é julgado, ainda deve ser considerado inocente,
de maneira que não podemos retirar daquela conduta que ainda não podemos
afirmar que, de fato, cometeu, nenhum juízo de periculosidade.
Contudo, mesmo que contrário à esmagadora
maioria de nossa doutrina e ao pacificado entendimento de nossos magistrados superiores, a prática dos juízes singulares de primeira instância, e até mesmo dos tribunais
estaduais ou regionais federais, é uma utilização indiscriminada, exagerada,
equivocada e ilegal da prisão cautelar, ignorando-se, reiteradamente,
princípios constitucionais e regras processuais. Para que autorizem a prisão
processual de indivíduos supostamente infratores de leis penais mais graves, em
especial no caso de indivíduos de baixa renda, basta que existam indícios de
materialidade e autoria, ficando dispensada a adequação da medida aos demais
requisitos do art. 312 do Código de Processo Penal, e completamente aniquilado
o princípio da Presunção de Inocência e do Devido Processo Legal.
Na melhor das
hipóteses, podemos dizer que nos casos afeitos a crimes violentos, os juízes e
desembargadores invertem o caráter cautelar da medida em caráter antecipatório
da tutela: uma vez que percebem a possibilidade (nem mesmo carecem de prova
inequívoca) de autoria, determinam a prisão preventiva.
Prova e
consequência disso são os mais de 200.000 presos provisórios enjaulados em
nosso país. A falta de compromisso de nossos julgadores com a Constituição
Federal, com o Código de Processo Penal e até mesmo com a doutrina jurídica
gerou o absurdo quadro de um país que presume a inocência de seus cidadãos mas
mantem mais de duzentos mil deles presos sem julgamento.
(Continua na próxima semana)